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Fim da era do dólar? Moeda perde espaço e abre porta para alternativas

Queda no valor, políticas econômicas erráticas dos EUA e a crescente dívida americana colocam o domínio em xeque

Por Felipe Carneiro, de Los Angeles
Atualizado em 30 Maio 2025, 08h19 - Publicado em 30 Maio 2025, 06h00

“Nunca aposte contra os Estados Unidos” é um mantra do investidor mais influente da história, o americano Warren Buffett. Nascido em 1930, durante a Grande Depressão, Buffett viveu uma Guerra Mundial e várias crises, mas sempre manteve o otimismo. É emblemático que, no dia em que anunciou sua aposentadoria, em 3 de maio último, Buffett tenha revelado receio em relação ao futuro do dólar, a moeda da maior potência econômica que o mundo já viu: os Estados Unidos. As notas verdes estão perdendo valor frente a suas análogas estrangeiras, levando bancos centrais mundo afora a procurar outros meios de garantir reservas, como o ouro e o euro. Economistas discutem abertamente se a era do dólar como referência para a guarda de valor e de troca entre países e negócios está chegando ao fim, depois de oitenta anos de domínio absoluto. “Me assusta bastante qual vai ser o futuro da moeda”, disse Buffett.

O dólar encolheu: demanda menor pela moeda levou à queda no seu valor
O dólar encolheu: demanda menor pela moeda levou à queda no seu valor (Ekin Kizilkaya/iStock/Getty Images)

Não é a primeira vez que o dólar se desvaloriza frente a outras moedas. Recentemente, durante a pandemia de covid-19, sua queda foi até maior. Mas, desta vez, isso ocorre simultaneamente a outro fenômeno, mais raro: os juros dos títulos da dívida americana estão subindo. Em tempos de incerteza, investidores costumam procurar dólares e títulos do Tesouro dos Estados Unidos para proteger seu capital, justamente por serem investimentos considerados seguros. Quando ocorre uma desconexão entre as trajetórias do dólar e do prêmio da dívida americana — como agora, com um descendo e o outro subindo —, é sinal de excesso de oferta, ou seja, fuga de capital para ativos considerados menos arriscados. A princípio, a tese preponderante era de que a China e, em menor escala, o Japão e a Índia estariam vendendo seus papéis do governo americano, na prática despejando suas reservas no mercado como forma de pressionar os Estados Unidos a reduzir as tarifas de importação. Mas aos poucos fica claro que mesmo grandes fundos de pensão dos Estados Unidos estão buscando diversificar seus portfólios, preocupados com o futuro da economia do país. “Os sinais são de uma mudança de ciclo econômico, em que a percepção dos investidores sobre os Estados Unidos mudou”, afirma João Scandiuzzi, estrategista-chefe do BTG Pactual.

Buffett: pela primeira vez, o influente investidor se mostra preocupado com o futuro do dólar
Buffett: pela primeira vez, o influente investidor se mostra preocupado com o futuro do dólar (Ankit Agrawal/Mint/Getty Images)

E mudou mesmo. Em 19 de maio, a agência de avaliação de risco Moody’s rebaixou a classificação de crédito dos EUA. As outras duas grandes do setor, Standard & Poor’s e Fitch, já tinham feito o mesmo anos atrás. Com uma dívida líquida correspondente a cerca de 100% do produto interno bruto (PIB) e um déficit orçamentário de 7% no último ano — altíssimo para uma economia em bom funcionamento —, os Estados Unidos exibem uma situação fiscal precária. Os cortes de impostos aprovados pelo Congresso em abril vão acrescentar 5,8 trilhões de dólares ao déficit na próxima década, segundo cálculos do próprio governo, ultraando o valor somado dos cortes fiscais do primeiro mandato do presidente Donald Trump, dos gastos com a pandemia e dos estímulos aprovados na gestão de Joe Biden. Enquanto isso, a promessa de reduzir o dispêndio governamental por meio do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês), liderado por Elon Musk, o bilionário a quem Trump entregou a motosserra dos gastos públicos, se revelou vazia. Enquanto seu inspirador, o presidente argentino Javier Milei, de fato controlou despesas e eliminou o déficit de seu país, o dono da montadora Tesla viu os gastos federais desde a posse de Trump aumentar 154 bilhões de dólares em relação ao mesmo período de 2024. “O DOGE fez um bom trabalho de apontar desperdícios, mas prometeu demais e entregou de menos em termos de cortes verificáveis. Como resultado, seu efeito prático foi nulo”, afirma o economista Michael Cembalest, do banco J.P. Morgan.

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Para além do problema estrutural da dívida, os Estados Unidos estão deixando de ser um exemplo de estabilidade institucional. Dois dos pilares que sustentam o dólar como moeda de reserva internacional são a estabilidade do ambiente de negócios e a garantia de respeito às leis e contratos, algo que os Estados Unidos construíram ao longo de séculos — mas que o presidente Trump tem vilipendiado abertamente. Nas últimas semanas, ele ignorou uma decisão unânime da Suprema Corte, deu declarações de que nem todas as pessoas merecem o devido processo legal e ameaçou destituir juízes federais que bloquearem suas ordens executivas. Seu vice-chefe de gabinete, Stephen Miller, revelou estar estudando maneiras de suspender o habeas-corpus no país. Trump também impôs tarifas estratosféricas às importações, tornando os Estados Unidos um dos países mais protecionistas do mundo da noite para o dia, apenas para recuar parcial e temporariamente dias depois. Ninguém sabe o que vai acontecer com a política comercial dos Estados Unidos. “Ser um parceiro e aliado confiável é um pilar fundamental da dominância do dólar no mundo, e isso foi jogado ao vento”, observa Mark Sobel, ex-funcionário sênior do Tesouro e presidente da filial americana do centro de estudos Omfif, com sede em Londres.

Entusiasta do dólar: o presidente Javier Milei cortou gastos e fortaleceu o peso argentino
Entusiasta do dólar: o presidente Javier Milei cortou gastos e fortaleceu o peso argentino (Tomas Cuesta/Getty Images)

A ascensão do dólar como moeda global não foi um acidente histórico, mas o resultado de circunstâncias específicas. Em 15 de agosto de 1971, o então presidente Richard Nixon anunciou uma nova política econômica que incluía a suspensão da conversibilidade do dólar em ouro. Foi o fim do sistema monetário global acordado na cidade de Bretton Woods, no estado de New Hampshire, em 1944 — que estabeleceu o dólar lastreado em ouro como o centro em torno do qual todas as outras moedas, em frangalhos ao fim da Segunda Guerra Mundial, circulavam. O “choque Nixon” inaugurou um novo ciclo de moedas flutuantes livremente negociadas, de criação rápida de crédito e de fluxos de capital global. Desde então, o dólar não só desmentiu os pessimistas ao sobreviver à transição, como se espalhou pelo mundo a ponto de representar hoje 88% de todas as transações de câmbio e 58% das reservas oficiais de moeda estrangeira. “O que vimos foi uma hiperglobalização profunda, em grande parte graças à simplicidade e liquidez que o dólar proporcionou”, explica Maurice Obstfeld, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional e professor no Peterson Institute for International Economics, com sede em Washington.

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Apesar de todos os problemas, há uma razão bastante simples para duvidar que o dólar perca o trono: a dificuldade de encontrar alternativas. O mercado de 27 trilhões de dólares só de títulos do Tesouro americano garante uma liquidez inigualável. O euro já representa 20% das reservas mundiais dos bancos centrais hoje, mas bateu em um teto. A Europa está envelhecendo, sua economia é menos dinâmica e há poucos ativos seguros para reserva, já que cada país tem seus próprios títulos com riscos diversos. Já o chinês iuane, apesar de pertencer à segunda maior economia do mundo, representa apenas 2% das reservas dos bancos centrais, um número que tem diminuído desde seu pico quatro anos atrás. Falta à China liberdade, tanto para as pessoas como para o capital, entre outros problemas que abalam a confiança na sua moeda.

Transição: capa de VEJA sobre o fim do padrão dólar-ouro, em 1971; nos Estados Unidos, lojistas prometiam cotação “cheia”
Transição: capa de VEJA sobre o fim do padrão dólar-ouro, em 1971; nos Estados Unidos, lojistas prometiam cotação “cheia” (Hulton-Deutsch Collection/CORBIS/Getty Images)

Uma perspectiva mais provável é um sistema monetário descentralizado, com dólar, euro e iuane — e até uma possível moeda do Brics, bloco de países emergentes que inclui o Brasil (veja o quadro na pág. 29) — disputando espaço. Nesse cenário, ninguém teria o “privilégio exorbitante” que hoje os Estados Unidos desfrutam de se financiar com juros baixos e controle sobre a moeda global. O risco para os países mais pobres seria o de gerenciar obrigações de longo prazo em dólares enquanto financiam importações e investimentos em euros ou iuanes. Seria um mundo mais complexo, em que os países teriam de escolher uma das três grandes moedas, realinhando seu comércio com nações do mesmo bloco. As transações entre eles seriam reféns de tensões geopolíticas, além de ficarem mais caras.

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No mundo dos negócios, quase ninguém quer enfrentar esse cenário. O governo Trump tem a enorme responsabilidade de zelar por um sistema global que precisa de um dólar estável para prosperar, como tem acontecido nos últimos oitenta anos. Do alto de seus 94 anos (e de uma fortuna pessoal de 160 bilhões de dólares), Buffett advertiu que desvalorizar o dólar seria o jeito mais fácil de arruinar seu país natal e arrastar a economia global junto. Apesar das preocupações, o oráculo dos investimentos mantém a fé na moeda americana.

Musk com a motosserra: suas medidas tiveram pouco efeito prático no corte de gastos públicos
Musk com a motosserra: suas medidas tiveram pouco efeito prático no corte de gastos públicos (Will Oliver/EPA/Bloomberg/Getty Images)

“A moeda do Brics é uma alternativa”

Frank-Jürgen Richter, ex-diretor do fórum de Davos e fundador do Horasis, instituto com sede na Suíça, vislumbra um futuro sem o domínio do dólar

Richter: “Para países como o Brasil, seria mais fácil emitir títulos lastreados na nova moeda”
Richter: “Para países como o Brasil, seria mais fácil emitir títulos lastreados na nova moeda” (./Divulgação)
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O dólar pode perder seu domínio? Sim. A história é feita de ascensão e queda de grandes potências. Estamos vendo esse movimento com a ascensão da China. O mundo está mudando e novas moedas vão emergir.

A criação da moeda do Brics é uma possibilidade real? Com certeza. Seria uma moeda digital, não uma moeda do dia a dia. Mesmo a Índia e a China, que não são exatamente amigas, têm conversado muito sobre isso. Eu não apostaria contra o dólar, mas o Brasil e outros países estão buscando alternativas. Eles podem não querer acabar com o dólar, mas almejam ter uma opção em benefício econômico próprio. Seria mais fácil, por exemplo, emitir títulos lastreados na nova moeda. Para financiar projetos, não dependeriam do dólar.

Que impacto isso teria para a economia dos Estados Unidos? O presidente Donald Trump vai odiar, pois a economia americana depende do dólar. O comércio de petróleo ou de commodities agrícolas, tudo é feito em dólar. É fácil imprimir dinheiro quando sua moeda é a referência global. Os Estados Unidos são o país mais endividado do mundo, mas seguem emitindo novos empréstimos a taxas baixíssimas. Isso só é possível com o controle da moeda de reserva.

Publicado em VEJA, maio de 2025, edição VEJA Negócios nº 14

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